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sexta-feira, 17 de abril de 2009

CRÔNICA: COMO PAROU DE FUMAR

CRÔNICA: COMO PAROU DE FUMAR

Fumava desde os treze anos na escola.
Hoje tem quarenta e seis anos, não parece.
Parou de fumar aos quarenta e três, de súbito.
Sempre fumara com prazer, sem receio, sem remorso.
Era bem informado dos males do cigarro e de muitos outros males dessa vida.
Conselho, pressão, aporrinhação, mau-hálito, unha amarelada, câncer, coração, morte, opinião pública. "Meu filho, você queima dinheiro", dizia-lhe a mãe. Tudo em vão.
Nada limitava seu vício lúcido, seu prazer sem medo, sua felicidade existencial.
Era sua dose de nirvana de todo santo dia. Paga com seu trabalho, seu dinheiro.
Nunca diagnosticara nicotina, alcatrão, fumaça tóxica, arsênico, carvão ou o que mais produzia fumar no seu corpo: pulmão, sangue, pele, boca, nariz, coração... Pra que? Indagava com convicção.
Só o sabor extasiado da tragada lenta e profunda na mente. Sabia fumar com classe. Era feliz.
A referência ideológica do cigarro sempre acompanhara com dedicação, com capricho.
Muita atenção no gestual da persona fumante. Nos filmes que adorava assistir na sessão de cinema da tarde vazia se deleitava e aprendia com lindas atrizes e viris atores em magistrais e, por que não, sensuais, closes de cigarro, mão, boca, isqueiro, tragada, fumaça noir. Encantava-se na sedução de gesto, jeito, pose dos ídolos. E lá estava o inefável cigarro coadjuvante no papel à medida da indústria cultural do tabaco.
A vida só valia viver bem vivida se: um cigarro antes, outro durante, outro depois.
Senão, pra que viver. Filosofava pela causa tabagista.
Sua formação, sua personalidade, quiçá, seu caráter, moldaram-se na companhia inseparável do cigarro. Seu melhor amigo. E creio, conselheiro espiritual na cotidiana reflexão envolvida pela etérea fumaça azul.
Sem um cigarro entre os dedos não existia para o mundo. Sem ele nos lábios não havia trabalho. O maço e o Zippo sempre no bolso eram sua segurança fundamental.
Creio que não seria exagero lhe parodiar famosa reflexão: “Fumo, logo existo.”
Então, um belo dia, a tragédia invadiu sua vida. Do nada, do mero acaso, do caprichoso descuido banal, de uma cilada do destino atroz.
Lia insone na cama com abajur, cigarros, cinzeiro, isqueiro e lápis na mão.
Entre uma tragada e outra, lia, e fazia anotações no livro com o lápis. Gostava de ler. E grifar e escrever nas bordas dos livros. Vício antigo dos tempos de ginásio.
Formas parecidas e ágeis entre os dedos.
De repente, o maço quase vazio. Levantou-se ansioso, se vestiu correndo e saiu na noite paulistana para comprar um pacote. Naquela época, tinha que andar um pouco pela noite vazia, mas sempre encontrava-se a boêmia acolhedora dos náufragos da vida. E o precioso cigarro.
Na volta, sua casa pegando fogo. Em chamas na madrugada crepitante. Horror, horror, horror...
Os gritos da vizinhança, polícia, corpo de bombeiro, curiosos. Confusão e balbúrdia. Muita água e lama em meio a fachos de luz, a nervosos giroflex vermelhos, aos clarões vacilantes do fogo.
Sua perícia mental, horrorizada, deduzira que marcara o livro com o cigarro aceso e colocara o lápis no cinzeiro. Oh, miséria miserável da troca fatal!
Perdera a mulher amada e a filha única de dois anos. Suas deusas na terra.
Na operação rescaldo da vida arruinada, finalmente, parou de fumar aos quarenta e três anos de súbito para penar uma vida maldita de castigo eterno.
Fora mais uma vítima trágica do vício de fumar.
Hoje só alivia sua dor tabagista o vício da bebida de bar em bar de todo dia.
Apesar dos pesares, sem perder a classe. No maior estilo de vida (arruinada).
Triste sina de uma vida condenada pelo vício adolescente da tarde vazia de cinema e ideologia.
jc.pompeu, mar 2009

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