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quinta-feira, 11 de junho de 2009

PROSA POÉTICA: OUSADIA


PROSA POÉTICA: OUSADIA

- Nem ouse me deixar!
Dessa maneira ele encerrou
mais uma daquela premente discussão
na cama dos últimos tempos.
Nas profundas do diálogo emancipado ressoava ainda
o tom autoritário, machista, violento da ancestral colônia.
Falou olhando a bunda branca marcada dos tapas e do cu,
rosados e intumescidos, enquanto ela de quatro
esticava o corpo suado, branco como leite,
procurando sua calcinha
nos lençóis finos de cheiro amarrotado.
O marido falou na sua razão
e nas suas vontades impostas pelo casamento católico
de seis anos de amor, dedicação, respeito
à moda dos antepassados das minas geraes.
(Na verdade havia uma mulata agregada, cria da fazenda,
nessa crise familiar, mas que não era assunto de ninguém,
muito menos de mulher branca bem casada,
e muito menos ainda dessa prosa poética...).
Ela nunca ousaria. (Deixá-lo).
Por respeito à família e à religião casara virgem.
Tudo isso, depois dos estudos até o Normal
no internato Santa Dorotéia da capital,
como era o costume das famílias mineiras de rica tradição.
Fogosa sem noção da libido e de um certo Freud,
experimentara uma volúpia antológica de fantasias sexuais.
Lembranças desde seus seis anos de idade sem, no entanto,
nunca ter maculado sua pureza virginal.
Questão de honra e de obediência à tradição católica
dos pais queridos.
Suas brincadeiras, seus namoros, seus encontros
sempre foram com homens bem mais velhos. Alguns ilustres.
Contudo, tinha uma inocente autoridade
e maduro zelo moral na feição jovial
que nenhum de seus homens bem mais velhos
(alguns ilustres) nunca ousou ir além do sagrado tabu.
Nem pensar. Nenhuma esperança, nem promessa qualquer.
Satisfaziam-se, todos, abusados e carnais,
com a porção profana do belo e devasso corpo angelical
daquela virgem proibida
pela castidade do rito católico
e dos costumes arraigados das minas coloniais.
Quatro dias após aquela fatídica discussão do casal
e o contumaz ultimato,
ela o deixou.
Sem ousar nem nada. Ela fugiu silenciosa e triste
numa viagem secreta.
Deixara para sempre a rica e segura vida da província.
Nada quis, nada carregou, nada falou, nada cobrou,
nada pensou. Somente fugiu.
Fugiu acompanhada de um choro escondido. Sem lágrimas.
Um choro d’alma.
Partiu com suas economias amealhadas
e uma mala pequena de roupas
e coisas. Uns trens de estimação.
Partiu sem nem mesmo um endereço de destino na bolsa.
Partiu livre de tudo e de todos.
A pele branca macia como leite encorpado
da fazenda arcaica pingou de ônibus em ônibus,
de cidade em cidade, até um destino...
No porto de Santos alugara um quarto-sala espaçoso
de janelões para o vaivém do cais.
Nos altos do vetusto prédio de quatro andares
perto da aduana.
No térreo, um discreto escritório dos negócios de café
e um bar.
Havia outros moradores que pouco conhecia ainda
no furtivo vaivém da escadaria.
Ambiente familiar, de respeito, de homens,
de trajes gordos, de negócios.
De distintas e airosas mulheres.
De ansiedades e receios.
Por ora só conhecera madame Dafne, sua nova amiga e sócia
na vida...
Uma outra vida povoada de gente
estrangeira, passageira, aventureira
e solitária como ela.
Gente de ares cosmopolitas e impacientes.
Um mar de homens
de longitudes bíblicas, civilizadas, excêntricas,
desconhecidas, paradisíacas...
Habitantes de mil navios,
de milenares viagens por mares navegados,
de eternas partidas e chegadas
na companhia do sol nascente
e dos entardeceres de sangrias tingidas
da natureza indiferente à aventura humana.
Gente até do fim do mundo da seda de olhos puxados
nunca imaginados. (Numa cama...).
Sujeita da pele láctea marcada de carnes coradas
e dos cabelos castanho-claros cacheados
foi batizada e louvada de “a polaca da madame Dafne”,
ignorantes embevecidos do sotaque miúdo mineiro.
Era um novo mundo de fantasias e desejos.
Ali as falas, as palavras, então, eram muito poucas
e ininteligíveis como se,
uma babélica comunidade de estranhos seres sexuais.
Imperava a linguagem dos sentidos, do prazer, do erotismo.
A língua universal do prazer sexual.
Do sabor e saber de experiência
da vida errante.
Comprados a pesos e dinheiros em espécies variadas.
Primos-irmãos dos piratas e corsários dos navios fantasmas...
Nas terças-feiras tirava o dia em passeios
pelas praias de Santos e São Vicente.
Protegia o corpo leitoso na sombra das árvores,
por debaixo das marquises,
na sombrinha made in Japan.
E nos cuidados com o sol forte na pele sensível.
Sua cútis jovial.
Gostava do tempo nublado e até da chuva miúda.
Comia pastel com caldo de cana no Zé da China da esquina.
Tomava sorvete sentada na orla.
Avistava longamente, as saudades da sua minas interior
e o vaivém de navios na ponta da praia.
Na sessão da tarde divertia-se sozinha na magia do cinema.
A noitinha ia a missa. Variava pelas igrejas da cidade grande.
Cantava muito bem, com emoção,
quase um êxtase,
os hinos e as rezas sacramentais.
Nesse dia ia dormir mais cedo depois de jantar sozinha
no bar do seu prédio.
Freguesa que se tornara da lógica lusitana ilustrada
pelas famílias donas do bar:
Bar Pitalmeida, pintado na fachada histórica.
Já há dez meses na nova vida - semiclandestina -
das mulheres de vida fácil,
numa certa terça-feira de verão e muito calor criou coragem
e ousou como nunca ousara antes nas suas lembranças:
Acompanhada de uma colega de métier,
criou coragem e ousadia e também ficou
de maiô e chapéu na areia debaixo do guarda-sol.
Lá pelas bandas do canal 4 na praia do Embaré.
Que vergonha! Que frisson! Que festa de risos!
E de frescor infantil com sua amiga-puta
na praia - semidesértica - daquela manhã.
Nunca acreditou de que fosse capaz de tanta ousadia
na vida...
Vestida de maiô e chapéu ao sol far-niente
da praia de Santos!

jc.pompeu, jun 2009